O (a) bonito (a) que faz mal

Caro (a) leitor (a),

O desafio de escrever uma coluna semanal está também na necessidade de estabelecer um processo criativo, um dos aspectos mais fascinantes da mente humana.

Minhas colunas são alicerçadas em dois fatores: repertório e vivências. Ou seja, quanto mais experiências culturais, profissionais e pessoais trago na bagagem, mais referências criativas aparecem em minha mente. E curiosidade, minha sede de nunca querer parar de aprender, questionar e explorar ideias, impulsiona esse processo.

O (a) bonito (a) que faz mal

Renda de bilro. – Foto: Getty Images/iStockphoto/ND

Assim, alguns temas ficam dias, semanas, até meses sendo processados, até que consigo estabelecer uma conexão entre eles e o conteúdo — um processo deliciosamente complexo.

Foi assim com o tema de hoje, “O (a) bonito (a) que faz mal”. Você com certeza já ouviu o famoso ditado “Não julgue um livro pela capa”. Ambos os temas têm uma conexão interessante: falam sobre a relação entre aparência e essência.

Há cerca de dois meses, ao acompanhar um exame, vi pela primeira vez a imagem de um tumor cancerígeno. Pasmem: diferente de tudo que imaginava, era uma imagem “bonita”, que me lembrou uma renda de bilro. Um ótimo exemplo de como aparência e essência podem se desconectar.

Olhando superficialmente, a renda é um tecido leve e delicado, mas, por trás dela, há um processo trabalhoso, artesanal e de grande valor cultural. Quando falavam em câncer, eu, na minha ignorância — somada ao pavor da doença —, imaginava algo escuro, disforme, assustador, como aquelas imagens de pulmões de fumantes nas caixas de cigarro.

Mas, ao me deparar com aquela estrutura branca e quase minúscula, cheia de florzinhas e babadinhos, soou um alarme em minha mente: como algo aparentemente pequeno, inofensivo e bonito pode ser tão cruel a ponto de nos fazer sofrer — e, por vezes, tirar vidas?

O choque entre a delicadeza visual e a gravidade da doença cria um impacto simbólico. Assim como o tumor parecia uma renda delicada, muitas pessoas, relações e situações podem parecer inofensivas ou encantadoras à primeira vista, mas carregam impactos negativos ocultos.

Você já se envolveu com alguém que parecia perfeito, mas depois mostrou um lado sombrio?

Nem sempre o que causa dor tem consciência disso. O câncer não “sabe” que destrói, assim como muitas pessoas não percebem o mal que causam. E nós? Será que, em algum momento, já fomos esse tumor na vida de alguém — ainda que sem intenção? Não podemos subestimar os perigos do que parece bonito, e é importante lembrar que nem tudo que tem aparência desagradável é, de fato, ruim.

Essa coluna demorou para ser escrita, não porque o tema me faltava, mas porque eu precisava encontrar uma forma de abordá-lo sem que parecesse um relato pessoal preocupante. O que, de fato, não é! Meu desafio era criar uma reflexão sobre as aparências e sobre o impacto que algo — ou alguém — pode ter em nossas vidas, às vezes de forma imperceptível.

No fim, escrever é isso: encontrar conexões, desafiar percepções e trazer à tona o inesperado.

Se até um tumor pode parecer delicado à primeira vista, quantas outras coisas na vida não estamos enxergando com a profundidade necessária?

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